domingo, 19 de agosto de 2012



Ao bom lavrador, vasta é a lavra.
Do olhar sensível e sincero, o eterno se vê.

Seria um pecado inventar um passado em que a simples lembrança já traz arte incalculável.

E era uma rua famosa, cheia de arcos. Desfilavam na rua os saltos vigorosos, mas tontos. Saias coloridas carregavam mulheres, que em aparecida discrição, contraste mais que planejado, semeavam desejos, olhares e negações. Quanto a isso, pouco há de se falar agora. As mesas lotadas, pingavam cerveja, sustentavam alimento gorduroso e serviam funcionalmente pro tradicional momento de descarga cotidiana. Argentinos passavam calados, algumas suecas se desentendiam com mendigos, alguns namorados protegiam suas respectivas como se carregassem um feto na mão. O cenário era lindo também. O show de emoções me emocionava, desatava alguns nós passados e formulava desejos imprevisíveis. Aquela morena me olhando do outro lado da mesa, o cara de bigode e sisudo, a história do garçom sorridente. Os sons se misturavam com as lembranças, por hora as excitações transbordavam, a alma se sentia em Casa, num turbilhão de vontades externas e internas, porém, num autocontrole de quem desarma uma bomba. A missão era digna. Sempre é. O palco era cheio de atores dispostos e as intensidades se personalizavam nos sons, nos cheiros e em todos os movimentos intencionais. Via muito nos detalhes, entrava no esconderijo de cada desvio. Sabia a importância de cada contexto.

Eu carregava (Não, eu carrego!) duas Rosas. Dizem que as melhores flores são as roubadas. Essas não se pode roubar, porque não se pode vê-las, enquanto não as conquista. Uma se chama pacificação. A outra se chama compreensão.
Naquele momento eu percebia que as Rosas não eram (são!) minhas, embora eu possa desfrutar de sua posse. Já havia me preparado pra alegria de outro momento, porém, a gente só dá a vontade, quem dá o trabalho é Ele.

O pretinho de olhos fechados se aproximava, como quem não quer nada, no passo bambo da desconfiança.
Pretinho não! Preto é cor. Ele era negro.Ele era muito negro. Negro é raça, é história.

E o papo era assim:

-O patrão me dá um dinheiro?

Eu era o patrão. Das funções sociais que não quero ocupar, talvez essa seja a mais nojenta.

-Patrão, não! Sou irmão, porra! Vamos conversar.

Era disso que se tratava. O famoso 'olho da pedra'.  Um leve toque no olho da pedra desmonta a maior de todas as rochas em pedaços insignificantes. O homem desaguaria a chorar naquele momento, (in)oportuno demais pra nós dois, talvez.

-Eu te vi de longe. Sabia que podia contar com você. Eu vi o sofrimento no seu semblante. Você tá sofrendo por ela. Eu sei como é isso. Eu passei pelo que você tá passando.

A reação foi automática. Eu não estava pensando Nela. E, realmente não estava. Mas, pensei mais tarde.

-'Ela' quem, pô? Eu tô bem, tô suave. Se tranquiliza e senta aê!

Numa demonstração clara de inferioridade interiorizada, numa síntese confusa de culpas, ele desabafou sem temer o mundo, mas temendo a si mesmo:

-Eu já fui como você. Bonitão, cheio da juventude. E comia mesmo. Elas me queriam. Você sabe como é, elas querem mesmo! Eu era O Negão! Po, eu era O Negão! Eu tenho quatro filhos na favela, graças a Deus. Hoje não posso conversar com eles. Estou há 5 anos nessa condição. Mas minha mulher descobriu e quando ela me traiu, eu não aguentei. Tu sabe como é, o sangue sobe a cabeça. Hoje meus filhos moram lá, sem a mãe. Eu tô nessa condição que um dia cada um de nós pode estar. Dormindo na rua, vivendo da ajuda. As ilusões já passaram, hoje eu sou isso aqui. Hoje eu percebo quem é quem de longe. Eu to vivendo as consequências do que eu fiz, eu sei disso. Eu era O negão! Hoje sou isso aqui.

Atento ao palpável, o invisível já atuava ali há muito tempo. As ajudas verdadeiras e eficazes podem ser caracterizadas por um qualitativo fundamental: o seu silêncio! Ver esse homem sendo empurrado por garçons, condenado pelos clientes do bar, invisível para os homens de terno ou calça jeans era a prova de que só o trabalhador dedicado pode ver as oportunidades de trabalho onde aparentemente está o cenário habitual. Energeticamente, as trocas já eram validadas, como instrumento já havia me posto, como ele também, ao me trazer rara ajuda e autocompreensão.

-Se pacifica, amigo. Você só se verá por completo quando for totalmente transparente. Então se limpa primeiro. Pensa em você, em largar essas culpas. Você vai ver que toda consequência, contingência do plantio, é oportunidade dolorosa ou prazerosa pra minha, pra sua, pra nossa compreensão. Você tá aqui comigo, eu aqui com você  e nesse momento a gente vai fazer de tudo pra plantar o melhor possível. Uma passada bem dada é a possibilidade de ver mil imagens que não se podia ver no dia de ontem. Tu já tá compreendendo muito.

Podia parecer esnobe, mas o carinho recíproco espelhava a verdade de cada personagem do diálogo. Eu não queria resolver os problemas (assim chamados por nós, por falta de cuidado conceitual) daquele homem naquela conversa de meia hora, ele ainda tinha o pão pra ganhar. Nem ousávamos mudar o mundo, só era um tentativa mútua e sincera de achar o nosso significado naquele coletivo de nós e de mundo.

Eu vi o que a simples descrição não captura.

O momento épico, ou a conversa, como queiram, terminou com algum dinheiro na mão do ex-Negão e a seguinte frase dita pelo ilustre:

-Hoje, a multidão não me vê, mas, hoje, eu vejo a multidão.

Foi um êxtase.Uma prévia do orgasmo espiritual que eu teria no dia seguinte. Era só isso que eu queria que fosse sincero.

"A multidão não me Vê, mas eu Vejo a multidão."

-Vá em paz, meu amigo!